Experiência Religiosasobre Edith Stein

O olhar steiniano sobre os caminhos de interioridade de Teresa d’Ávila

Stein-TeresadAvila

Resumo: A linguagem das vivências apresentadas por Teresa d’ Ávila (1515-1582), no século XVI, em seu Livro da vida (1565), e nas analogias simbólicas do livro Castelo Interior ou moradas (1577), é acolhida e refletida no mundo contemporâneo por diversas áreas das Ciências Humanas, no universo plural das Ciências da Religião e pela Teologia. Seus escritos comunicam experiências que revelam caminhos de interioridade, percalços da vida relacional e uma intimidade cristã acalentada pelo encontro com a verdade. As obras teresianas não passaram despercebidas pelo olhar da fenomenóloga Edith Stein (1891-1942) que, na incessante busca pela almejada verdade, encontra no método husserliano a fundamentação científica que norteará — ininterruptamente — sua forma de escavar as profundidades do eu. E encontra, na via mística de Teresa d’ Ávila, não só aportes a serem sustentados em sua Antropologia Filosófica, mas “portas de acesso” que a ajudam a consolidar fundantes mudanças, já demarcadas ao longo de sua trajetória acadêmica como membro do grupo husserliano em Gotinga, porém concretizadas em suas escolhas vivenciais que delimitam diferentes posicionamentos diante do fenômeno religioso: judia, ateia, católica-carmelita. Esse salto para vida carmelitana nutre a fé e a dimensão intelectiva de Edith Stein, pois em seus estudos sobre a dimensão físico-psíquico-espiritual a busca pela essência da alma exerce fascínio. Essa comunicação segue o método fenomenológico e tem como intencionalidade investigar as ressonâncias que os Caminhos de Interioridade de Teresa d’ Ávila deixaram no ser pessoa de Edith Stein/Teresa Benedita da Cruz, ao escolher o Carmelo Descalço como modelo de seguimento cristão. Verificar-se-á que o itinerário existencial e acadêmico de Edith Stein nos apresenta uma trajetória de busca pelo conhecimento da formação humana a caminho de um Centro mais Profundo. Sempre conciliando o dinamismo do mundo externo com o acolhimento de sua interioridade, como tentativa de se chegar à verdade almejada. Nos escritos de Teresa d’ Ávila, Edith Stein encontra o entendimento das moradas do sentido, que livremente conduzem o humano a certas profundidades do eu, onde o “néctar” existencial transborda, exala “o perfume”, desvelando a essência da alma, ou seja, o entrar em si mesmo, para, assim, permanecer além de si em um certo centro mais profundo.
 
Palavras-chave: Interioridade; Edith Stein; Vivências; Moradas; Mística Cristã.

1. Introdução

Teresa de Ahumada y Cepeda nasce em 28 de março de 1515, na cidade de Ávila, na Espanha. Aos 12 anos fica órfã de mãe e diante de uma imagem de Nossa Senhora súplica para que Ela seja sua mãe. Estuda no convento das irmãs Agostinianas, no qual sua alma é despertada para questões religiosas. Provavelmente, nesse tempo, adquire o costume de pensar na Oração do Horto. Em 1535, aos 20 anos, foge do aconchego familiar para entrar no Mosteiro da Encarnação, também localizado em Ávila, e passa a se chamar Teresa de Jesus. Neste mosteiro permanece por longos anos e nele vive fecundas experiências internas e externas — marcadas por um longo curso de enfermidades corporais — que maximizam suas inquietações, intensificam sua forma contemplativa e ativa de se posicionar diante do sagrado e para o mesmo.

Seu itinerário existencial e espiritual consolida várias transformações na espiritualidade carmelitana. Por obediência a Deus, Teresa de Jesus (2001) passa 11 anos dedicando-se a grandes fundações, atividade iniciada em 1562, em sua terra natal, com o convento São José de Ávila, e, posteriormente, em várias cidades da Espanha, mais Carmelos Descalços foram fundados: “Medina (1567), Malagón (1568), Duruelo (1568), Valladolid (1568), Toledo (1569), Pastrana (1569), Salamanca (1570), Alba Tormes (1571)”. (2001, p. 591). Ao receber autorização para reformar o Carmelo masculino, convive com o carmelita Frei João de São Matias, que vai ajudá-la nas reformas e que será o primeiro Carmelita Descalço/São João da Cruz (1542-1591).

De Madre e fundadora da nova reforma da Ordem das Descalças e Descalços de Nossa Senhora do Carmo, podemos considerá-la também uma reformadora da história da Igreja e de muitas vidas que, atravessadas pelo néctar de sua trajetória espiritual, se deixam encantar pela vida em Cristo. Sejam quais forem as circunstâncias impostas pela sua frágil saúde física, pelas inquietações do pensamento ou nas turbulentas relações do seu tempo, seu pilar de sustentação é a via orante. Como afirma no seu Livro da Vida (2001): “Para mim, a oração mental não é senão tratar de amizade — estando muitas vezes tratando a sós com quem sabemos que nos ama” (TERESA, 2001, p. 63).[1

Percorrendo itinerários que ligam o século XVI aos tempos modernos, podemos afirmar que a ressonância dos escritos de Teresa de Jesus ecoa na indeterminação fecundada pela força do tempo Kairós. Nascida na primavera, a florescência das profundidades atingidas desperta muitos que se encontram adormecidos e inebria aqueles (as) que, na busca pela verdade cristã, já livremente, se deixam levar pelos movimentos e caminhos retratados por Teresa de Jesus, que tenta traduzir de forma pedagógica/literária, simbólica e singular itinerários do desabrochar místico.

Adentrando-nos no entendimento dos pilares da espiritualidade de Teresa d’ Ávila [Jesus], a presente comunicação busca refletir suas influências no ser pessoa de Edith Stein (1891-1942), pois a vida dessa Santa de Ávila torna-se para ela mais que um modelo a ser seguido: um reflexo de unicidade em Cristo, desvelado pela essência encontrada nas vivências do mundo circundante e da interioridade. Essa profunda entrega às profundidades do eu — que culmina em certas posturas diante do outro-eu — aproxima estas grandes mulheres, hoje destacadas como Santa Teresa de Jesus (Doutora da Igreja) e Santa Teresa Benedita da Cruz (Copadroeira da Europa). Verificar-se-á que o carisma teresiano provoca no íntimo de Edith Stein certo “repouso” aos incessantes movimentos que ela realizava em sua busca pela verdade.

2. Itinerários do desabrochar místico em Teresa d’ Ávila [de Jesus]

A linguagem do vivido apresentada por Teresa d’ Ávila (1515-1582), no século XVI, em seu Livro da Vida (1565), e nas analogias simbólicas do livro Castelo Interior ou Moradas (1577), é acolhida e refletida no mundo contemporâneo por diversas áreas das Ciências Humanas, no universo plural das Ciências da Religião e pela Teologia. Seus escritos comunicam experiências que revelam caminhos de interioridade, percalços da vida relacional, uma intimidade cristã acalentada pelo encontro com a verdade e o reconhecimento de um Deus sempre misericordioso.

Em seu Livro da Vida, Teresa de Jesus (2001), a partir de sua experiência, apresenta um “Tratado de oração”, no qual revela os graus de dificuldades e deleites encontrados nesse itinerário espiritual. Neles expõe a necessidade de o praticante tomar certos cuidados: com o si mesmo (dificuldades corporais; diferenças entre intelecto, quietude e vontade), com pseudos mestres espirituais (estes devem ter vida orante), com os falsos estados de humildade, dentre outros. Ao demonstrar as dificuldades vivenciadas em seu próprio caminho de oração, alerta a seus leitores:

Haverá momentos, mesmo para os muito adiantados na oração, em que Deus os vai testar, momentos em que terão a impressão de que Sua majestade os abandonou; porque, como eu já disse — e não queria que fosse esquecido —, nesta vida a alma não cresce como o corpo, embora cresça verdadeiramente; mas uma criança, depois que cresce e atinge o desenvolvimento, torna-se adulta, não volta a ter corpo pequeno. No caso da alma, no entanto, isso acontece, como eu vi em mim, pois em outro lugar não o vi; isso deve servir para que nos humilhemos em nosso próprio benefício e para que não nos descuidemos enquanto estivermos neste desterro; quanto mais alto estivermos, mais devemos temer e menos confiar em nosso próprio poder. Há ocasiões em que as próprias almas já submetidas por inteiro à vontade de Deus — sendo até capazes de sofrer tormentos e enfrentar mil mortes para não serem imperfeitas — são assoladas por tentações e perseguições. Nessa circunstância, elas devem usar as primeiras armas de oração: voltar a pensar que tudo acaba e que existem céu, inferno e outras coisas dessa espécie.

(TERESA, 2001, p.102-103)

Desperta para o entendimento de que nem sempre boas leituras e atos de caridade são possíveis, de que muitas vezes sua alma estava aprisionada pelas perturbações do intelecto e/ou pelos males do corpo, afirma: “Sirva-se então ao corpo por amor a Deus, para que ele, em muitas outras ocasiões, sirva à alma”. (TERESA, 2001, p. 80). Em seu itinerário místico, a tríade corpo, alma e espírito é inseparável, pois Teresa de Jesus demonstra a necessidade do reconhecimento de suas interfaces para que o humano alcance elevados graus de oração e passe não só pelo esforço pessoal, mas por intermédio da graça a habitar nas moradas do desabrochar místico. Afirma Pedrosa-Pádua (2015):

Teresa chamará o profundo da alma de centro, morada principal do castelo interior. No final do seu itinerário espiritual, Teresa o chamará claramente “espírito”, diferenciando-o da alma, embora sempre em relação com ela. Assim, embora se considere iletrada e, segundo ela, incapaz de nomear os vocábulos, de entender o que é a mente ou que diferença há entre a alma e o espírito, Teresa segue a antropologia tripartida presente em seu mestre Osuna2 e, possuidora de uma experiência cuidadosamente refletida, desenvolverá em filigrana dialética da relação entre o corpo, psique (alma) e espírito, e também a relação entre as potências da alma, ou seja, a relação entre a memória, o entendimento e a vontade.

(PEDROSA-PÁDUA, 2015, grifo meu, p. 45).

Sempre atenta aos movimentos de sua alma, Teresa de Jesus (2001) considerava-a como um jardim; nela, o Senhor misericordioso passeava de forma relacional. Portanto, reconhecia que, mesmo se sentindo na secura e reconhecendo necessidades de podas que lhe geravam sofrimentos, as flores chegariam, o desabrochar e o odor mostrariam o esplendor do seu pleno desenvolvimento espiritual, revelado pela liberdade do espírito. Seu modo contemplativo de orar, e sua vida ativa infundiam certezas em sua alma e uma delas lhe confirmava “[…] nesta vida não podemos estar sempre num mesmo estado. Numas ocasiões, eu teria fervor e, em outras, estaria sem ele; numas, teria desassossego e, noutras, quietudes, e, em outras ainda, tentações.” (TERESA, 2001, p. 287).

Porém, mesmo nas enfermidades corporais, nas variações do humor e/ou sentindo ausências de Deus, a confiança Nele torna-se para Teresa de Jesus o reconhecimento de que Ele tudo ordena nas almas por Ele já despertas e continuamente nutridas pela intimidade da oração/meio e pela ação recriadora regida pelo Espírito Santo, por meio da qual o ser passivo a sua vontade chega a experienciar os frutos do amor perfeito.

Em seu escrito de 1566, Caminho de perfeição, Teresa de Jesus (2001) chega a afirmar que, por mais belo que seja o corpo, o apego a ele é amar algo sem substância, e que a inclinação natural de desejar se sentir amado pode ser uma cegueira quando se ama aqueles que não trazem proveito à alma ou quando deles se espera recompensas, mas “[…] o Senhor ensina a quem se deixa instruir por Ele na oração ou a quem Ele deseja instruir; essa pessoa ama de um modo deveras distinto daquele de quem não chegou nesse ponto.” (TERESA, 2001, p. 18). Ela observa que pessoas generosas não se detêm em si mesmas e/ou em atrativos exteriores, reconhecem o próximo como um outro-eu, ou seja, “[…] têm um ardente desejo de que ele seja digno do amor de Deus […], sabem que só assim podem continuar a amá-lo”. (TERESA, 2001, p. 320).

O fruto maduro de sua vivência espiritual nos chega através do escrito Castelo Interior ou Moradas.3 Nesse Tratado, Teresa de Jesus (2001) continua a escrever sobre “as coisas de oração”, clarificando assim a sua experiência e o cume do desabrochar místico. Nele considera a alma como um castelo de diamante ou cristal, dividido em várias moradas que desvelam a intimidade entre a criatura e o Seu Criador rumo a um centro mais profundo. Ao iniciar a descrição desse itinerário espiritual relata:

E, assim, começo a cumprir essa obediência hoje, dia da Santíssima Trindade do ano de 1577, neste mosteiro de São José do Carmo de Toledo, onde atualmente me encontro, sujeitando-me em tudo o que disser ao parecer de quem me mandou escrever — que são pessoas eruditas. Se eu disser alguma coisa que não esteja em conformidade com o que ensina a Santa Igreja Católica Romana, atribua-se isso à minha ignorância, e não à malícia. Isso se pode ter por certo; pela bondade de Deus, sempre estive, estou e estarei sujeita a ela.

(TERESA, 2001, p. 440).

Desvelando os caminhos percorridos para estar em profunda intimidade com Deus, Teresa de Jesus (2001) descreve em seu livro Castelo Interior sete moradas que não só pelo esforço pessoal (autoconhecimento, percepção, vontade — moradas 1º, 2º e 3º), mas pela graça (suspensão do eu, passividade — moradas 4º, 5º, 6º e 7º) o humano pode chegar ao crisol do amor e ao matrimônio místico (centro da alma em união Mística, 7º morada). Ainda seguindo duas linhas mestras: a interiorização (linha antropológica) e a união (linha teologal cristológica), ambas alicerçadas nos frutos recolhidos da oração, revelam essa incessante busca por atingir um centro mais profundo. Até que a fonte interior brote da quietude transpassada por um sentido Trinitário que faz com que o mais profundo surja: o desabrochar místico.

3. A busca pela verdade de Edith Stein nos ecos espirituais teresianos

Edith Stein nasce na Alemanha, cidade de Breslau, no dia 12 de outubro de 1891. De origem judaica, seu nascimento coincidiu com a solene data em que é comemorada pela tradição judia a festa do Yom Kippur — o dia da Expiação/Perdão, quando o sacerdote entrava na Sancta sanctorum e oferecia para si e para seu povo um sacrifício de reconciliação. Na Introdução Geral das Obras completas de Edith Stein (2002a) editada pela Monte Carmelo encontramos a seguinte associação sobre essa coincidência “[…] a Reconciliação é o resumo profético de toda sua existência e do binômio que nela encontra uma profunda unidade entre: judaísmo-cristianismo”. (FERMÍN, 2002a, v.1, p. 44, tradução nossa).4

Em Breslau, Edith Stein inicia sua vida acadêmica. Interessada pela Psicologia, logo descobre que essa incipiente ciência buscava se sustentar em princípios empíricos que acabavam evidenciando o exercício de uma “Psicologia sem alma”. Em seus estudos com o Psicólogo empirista William Stern (1871-1938) depara-se com o escrito Investigação Lógica de Edmund Husserl (1859-1938) e reconhece em seu método uma correta saída para aprofundar o entendimento da natureza e estrutura do humano. Mudando seu curso estudantil, busca sua inserção no círculo de fenomenólogos, em Göttingen. Através desse grupo, Edith Stein acompanhou não só as investigações de Husserl e de seus demais integrantes, mas também deu início a reflexões filosóficas que lhe despertaram novos interesses de investigação: o fenômeno religioso.

Inserida nesse “mundo circundante” de filósofos, as obras teresianas não passaram despercebidas pelo olhar da fenomenóloga Edith Stein, que, na incessante busca pela almejada verdade, encontra no método husserliano a fundamentação científica que norteará — ininterruptamente — sua forma de escavar as profundidades do eu e descrevê-la. E encontra, nos escritos tomistas e na via mística de Teresa d’Ávila, não só aportes a serem sustentados em sua Antropologia Filosófica, mas “portas de acesso” que a ajudam a consolidar fundantes mudanças, já demarcadas ao longo de sua trajetória acadêmica como membro do grupo supracitado, porém concretizadas em suas escolhas vivenciais que delimitam diferentes posicionamentos diante do fenômeno religioso: judia, ateia, católica-carmelita. Sobre o percurso desse processo de conversão da, já conceituada, filósofa Edth Stein evidencia Fermín (2002):

Finalmente cairá em suas mãos o livro que servirá como última mediação no caminho para o Catolicismo. E ele ocorre no verão de 1921, quando ela se encontrava na casa de campo de sua amiga Hedwig Conrad-Martius. Em uma tarde que ela ficou sozinha na casa, escolheu na biblioteca o livro da Vida de Santa Teresa de Jesus. Se concentrou tanto na leitura que não pode fechá-lo até terminar. Concluída essa leitura, já tinha claro: queria ser católica.5

(FERMÍN, 2002, p. 41, grifo do autor, tradução nossa).

Mesmo diante de vivências protestantes, manifestas pela fé dos amigos Husserl, Hedwig, dentre outros, e de tantos clássicos de espiritualidade, seu primeiro contato com a espiritualidade carmelitana se dá de forma avassaladora e conclusiva. Como afirma Edith Stein (2002a), em sua autobiografia, logo após ter lido ininterruptamente o Livro da Vida de Teresa de Jesus, ela deu um fim à sua ansiedade e à busca pela verdade. Este fato nos leva a perguntar: O que une essas duas grandes mulheres de tempos tão distantes? Similaridades revelam: ambas eram movidas por uma personalidade forte, ambas marcaram historicamente suas épocas pela incessante busca pelo autoconhecimento, por uma entrega a um itinerário interior que se molda na fé cristã e por uma busca da essência que desvela a verdade/o amor perfeito, dentre outras fortes qualidades. Segundo Fermín,

O afeto e veneração de Edith Stein por Santa Teresa é um amor que se faz visível, manifesto e reconhecível por aqueles que a rodeiam. Ele é tão firme e constante que ele mesmo se manifesta em alguns de seus escritos e palestras. Mas mais interessante é apreciar como seu estilo de vida vai se configurando com o exemplo de Teresa. O aspecto mais óbvio foi a sua entrega determinada à vida de oração e meditação.6

(FERMÍN, 2005, p.161).

Para Edith Stein (2004b), ao falar das obras que Deus realiza nas almas, Teresa de Jesus escolhe clarear esse itinerário a partir de suas vivências interiores/contemplativas. Deste estado de orientação interior surge o insight de desvelar o processo espiritual a partir do Castelo Interior e, intuitivamente, nasce a riqueza de sua linguagem simbólica, na qual, através das sete moradas e aposentos, a Santa vai demonstrando os perigos e os deleites existentes. Como o apresenta Edith Stein (2004b),

O corpo o descreve como o muro que cerca o castelo. Os sentidos e potências espirituais (memória, entendimento e vontade), às vezes como vasos, às vezes como sentinelas, ou simplesmente como moradores do castelo. A alma, com seus numerosos aposentos, se assemelha ao céu, no qual “há muitas moradas”.7

(STEIN, 2004b, v.5, p. 81).

Sempre conciliando o dinamismo do mundo externo com o acolhimento de sua interioridade na tentativa de se chegar à verdade almejada, Edith Stein compreende que não são poucas as vezes que o humano fica fora de si, ou seja, nas muralhas que rodeiam o Castelo. Dentro do Castelo, seis moradas circundam a sétima (a mais interior) onde o ser totalmente no centro de sua alma une-se ao Deus que o habita.

Uma análise mais detalhada é realizada por Edith Stein (2004b), em cada uma destas moradas e aposentos. Sua síntese filosófica-teológica, sobre o Castelo Interior ou moradas de Teresa de Jesus, a leva à seguinte constatação “[…] minhas explicações sobre a estrutura da alma humana conectam com essa obra da Santa. [..] na qual entra a definição da alma como centro de todo o edifício físico-psíquico-espiritual que chamamos “homem”. (STEIN, 2004b, v.5, p. 80, tradução nossa).8

Também em seus escritos filosóficos (etapa do pensamento cristão), precisamente em Ser finito e ser eterno, Edith Stein (2007c) aprofunda O Castelo Interior analisando as vivências do Corpo vivo, da alma, do espírito. Enlaces presentes entre a sensibilidade e a espiritualidade são evidenciados, pois o humano sente e experimenta o que faz no corpo/percepção consciente e está destinado à percepção compreensiva do corpo vivo e pode chegar às vivências advindas do espírito livre. Segundo Edith Stein (2007c), a alma é o centro e a mediação deste processo corporal-anímico-espiritual, na qual

[…] o eu se separa do corpo de certa maneira e se eleva em sua liberdade pessoal por cima de sua corporalidade e sensibilidade. “De certa maneira”, pois, permanece ligado nela. A vida espiritual brota sempre de novo da vida dos sentidos e não se encontra em terreno próprio, mas o eu tem a possibilidade de fixar em seu ser “superior” e dali atuar sobre o “inferior”. Pode, por exemplo, tomar como meta a exploração cognitiva de seu próprio corpo e de sua própria vida dos sentidos. Aprende as possibilidades de servir-se do corpo e dos sentidos como instrumentos para conhecer e atuar, exercitando-os em vista de certos fins e configurando-os em instrumentos sempre mais perfeitos. Tem também a possibilidade de reprimir excitações sensíveis, de retirar-se, ficar distante da vida corporal e sensível e de sustentar-se mais no espiritual.9

(STEIN, 2007c, v.3, p. 966. Tradução nossa).

Edith Stein (2004b) encontra na via mística de Teresa de Jesus um autêntico caminho para buscar Deus no interior. Desde as muralhas até o centro do castelo, o itinerário ocorre em liberdade, unicidade tripartida e graça. Edith Stein (2004b) afirma que “[…] quanto mais profundamente a alma se submerge no espírito e mais firmemente se instala em seu centro, tanto mais livremente pode elevar-se sobre si mesma e libertar-se dos laços materiais”.10 (STEIN, 2004b, v.5, p.106, tradução nossa).

Sendo assim, Edith Stein (2004b) descreve da seguinte forma as moradas do castelo: 1º O conhecimento de si mesmo e o conhecimento de Deus se “sustentam mutuamente”; 2º a alma percebe as “chamadas de Deus”, elas penetram em seu interior; 3º a alma acolhe os “chamados de Deus” e busca ordenar sua vida conforme a sua vontade; 4º a oração de quietude que não se adquire com o entendimento, mas com o recolhimento “suave no interior” que Deus coloca na alma; 5º as coisas do mundo e as próprias coisas estão “adormecidas” na oração de união, pois “O corpo está como se estivesse sem vida; as potências da alma em repouso”.11 (Stein, 2004, p. 86, tradução nossa); 6º desposório espiritual, a alma está desperta em Deus, as potências e os sentidos estão “mortos” (ficam suspensos os sentidos exteriores e interiores), tudo fica impresso na memória, às vezes a alma cai em êxtases/vôos do espírito; 7º praticamente cessam os êxtases, a alma está em matrimônio espiritual, em união, ou seja, no centro mais profundo.

Conclusão

Constata-se, ao investigar as ressonâncias, que os Caminhos de Interioridade de Teresa dÁvila deixaram no ser pessoa de Edith Stein/Teresa Benedita da Cruz um “modelo” de seguimento cristão carmelitano. Tal modelo introduz em sua trajetória de busca pelo conhecimento da formação humana novos aportes que conduzem a um Centro ainda mais Profundo, ao núcleo da alma, ou seja, a alma da alma. Como ela intuía “O “interior é mais íntimo”, é também o “mais espiritual”, o mais distante da matéria, o que move a alma em sua profundidade”.12 (STEIN, 2007c, v.3, p. 972, tradução nossa).

Como vida e obra se comunicam nos escritos de Teresa d’ Ávila e desvelam potência e essência, Edith Stein encontra em seu proceder teológico, em suas analogias simbólicas e literárias, o entendimento das moradas do “sentido” que livremente conduzem o humano a certas profundidades do eu. Aí o “néctar” existencial transborda, exala “o perfume”, desvelando a essência da alma, ou seja, o entrar em si mesmo para, assim, permanecer além de si em um certo centro mais profundo, onde Deus permite a união do desabrochar místico, sem com isso esgotar o seu mistério.

Referências

Pesquisa comunicada no III Colóquio Interfaces FAJE, anais – v. 4, n. 3 (2019), p. 22-31.

FERMÍN, Sancho F. Javier. Edith Stein: modelo de mujer Cristiana. 2. ed. España: Editorial Monte Carmelo, 2002a.

_________. Edith Stein: modelo y maestra de espiritualidad. 4. ed. Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2005.

_________. Introducción General. In: STEIN, E. Obras Completas: v.1: escritos autobiográficos y cartas. [Trad. F. J. Sancho et al.] Vitoria: El Carmen; Madrid: Editorial de Espiritualidad; Burgos: Editorial Monte Carmelo, 200, p. 43-144.

PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015.

STEIN, Edith. Escritos autobiográficos y cartas, v. 1, [Trad. F. J. Sancho et al.] Vitoria: El Carmen; Madrid: Editorial de Espiritualidad; Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2002a (Obras Completas).

_________. Escritos Espirituais, v. 5, [Trad. F. J. Sancho et al.] Vitoria: El Carmen; Madrid: Editorial de Espiritualidad; Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2004b (Obras Completas).

_________. Escritos filosóficos: etapa de pensamento cristiano, v. 3, [Trad. F. J. Sancho et al.] Vitoria: El Carmen; Madrid: Editorial de Espiritualidad; Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2007c (Obras Completas).

TERESA DE ÁVILA, Santa. Livro da Vida. In: Obras Completas. [Frei Patrício Sciadini (Coord.). Texto estabelecido pelo Frei Tomas de la CRUZ], Higienópolis: Carmelitanas; São Paulo: Loyola, 2001, p. 19-291.

_________. Caminho de Perfeição. In: Obras Completas. [Frei Patrício Sciadini (Coord.). Texto estabelecido pelo Frei Tomas de la CRUZ], Higienópolis: Carmelitanas; São Paulo: Loyola, 2001, p. 293-429.

_________. Castelo Interior ou Moradas. In: Obras Completas. [Frei Patrício Sciadini (Coord.). Texto estabelecido pelo Frei Tomas de la CRUZ], Higienópolis: Carmelitanas; São Paulo: Loyola, 2001, p. 431-588.

_________, Fundações. In: Obras Completas. [Frei Patrício Sciadini (Coord.). Texto estabelecido pelo Frei Tomas de la CRUZ], Higienópolis: Carmelitanas; São Paulo: Loyola, 2001, p. 589-772.

Autor

  • Soraya Cristina Dias Ferreira

    Doutora (2020) e Mestra (2011) em Ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Instituto Junguiano de MG/AJB (2003-2004). Graduada em Psicologia (2002) e licenciada em Psicologia (2001) pela Universidade FUMEC/MG. Psicóloga, Professora e Palestrante no Instituto Superior Pedagógico Público de Nuestra Señora de Chota no Peru (2005). Participou da formação de Analista Junguiana pelo Instituto C. G. Jung MG/ICGJMG, filiado à Associação Junguiana do Brasil/AJB e à International Association for Analytical Psychology/IAAP (2006-2010). No período doutoral participou de cursos e congressos (presenciais e online) na Universidad de la Mística, CITeS Ávila/Espanha. Atualmente pesquisa: Edith Stein e o Círculo de Gotinga pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Pluralismo Religioso, Diálogo e Linguagem/Temática: Espiritualidade e Mística pela PUC Minas (https://www.repludi.com.br/). É membra da Comissão de Psicologia, Espiritualidade, Laicidade, Religião e outras Tradições (CLEROT) no Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-04) e do GT-AION: Interdisciplinaridades da Pesquisa em Psicologia Analítica no Brasil, cadastrado na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP/CNPq-Capes) (https://www.gt-aion.com.br/). Atua nos seguintes temas: Psicologia Profunda, Saúde Mental, Psicologia e Religião, Edith Stein, Espiritualidade e Mística. Tem experiência na área de Psicologia Clínica com ênfase em Psicologia Analítica Junguiana. Autora do livro Freud Jung: do complexo de Édipo à alma naturalmente religiosa (www.editorafi.org/141soraya). Participa da divulgação do pensamento steiniano Estudos Integradores da Pessoa Humana. Site (https://edithstein.com.br/) e Instagram @avidadeedithstein

Notas

  1. Por Oração Mental compreende-se que toda alma participa de um íntimo recolhimento em busca de experienciar no mais profundo — onde Deus habita — uma união transformadora. Portanto, apesar de Teresa de Jesus valorizar a parte intelectiva/entendimento e afetiva/sensações-sentimentos, reconhece que a vontade é o complemento maior que ordena o humano até que, ao tocar e ser tocado no coração, atinja o ápice do amor, ou seja, entre em quietude para: entrar em si, sair de si e em repouso/passividade unir-se ao que Deus faz na alma humana.
  2. Francisco de Osuna (1492 ou 97-1540) foi um frei Franciscano, autor do Terceiro Alfabeto Espiritual, no qual aborda a importância da interioridade/“entrar dentro de si” para “subir a Deus”. Teresa de Jesus, em 1538, usufruiu desse escrito de Osuna/oração de recolhimento e de vários livros de espiritualidade que de alguma forma revitalizavam as colheitas do seu fecundo caminho espiritual.
  3. Relevante destacar que esse escrito de Teresa de Jesus é considerado um complemento do Livro da Vida e Caminho de perfeição, mas possui finalidades diferentes. Primeiramente, Teresa de Jesus escreve para os seus confessores, mas seu Livro da Vida, por abordar o desabrochar místico, acaba indo para Inquisição. Após anos, já experienciando fecundas profundidades espirituais, seu desejo é viver sua vida religiosa/contemplativa, e não o de escrever como lhe foi solicitado por Padre Gracián e por seu confessor Doutor Velázques (que posteriormente foi Bispo de Osma e Arcebispo de Santiago de Compostela). Preferia deixar essa tarefa para os letrados. No entanto, mesmo desmotivada e relutante em escrever, recolhida no mais profundo do seu ser e corporalmente frágil, decide atender por obediência aos pedidos de retornar a escrever e a “aurora” se põe em seu ser revelando a força do seu vivido em analogias simbólicas que amplificam o entendimento do desenvolvimento da via mística. Esse escrito é então, por Teresa de Jesus, destinado às Monjas Carmelitanas Descalças, mas o seu inesgotável alcance mantém-se através dos tempos, pois sua “trama simbólica” desvela estruturas do humano em um mundo relacional que se efetiva entre ele e o que Deus pode realizar em seu ser.
  4. […] de la Reconciliación, es el resumen profético de toda su existência y del binômio que en ella encuentra uma profunda unidad: judaísmo-cristianismo.
  5. Finalmente va caer en sus manos el livro que servirá de mediación última en el camino hacia el catolicismo. Y ello ocurrió en el verano de 1921 cuando se encontraba en la casa de campo de su amiga Hedwig Conrad-Martius. Una tarde que se quedó sola en casa eligió en la biblioteca el libro de la vida de Santa Teresa de Jesús. Se ensimismó tanto en la lectura que no pudo cerralo hasta acabarlo. Concluída su lectura ya tendia todo claro: queria ser católica.
  6. El afecto y veneración de Edith Stein hacia Santa Teresa es un amor que se hace visible, patente y reconocible por quienes la rodean. Presenta tan firme y constante que incluso se manifesta en algunos de sus escritos y conferencias. Pero más interesante resulta el apreciar cómo su estilo de vida se va configurando con el ejemplo de Teresa. El aspecto más evidente fue su entrega determinada a la vida de oración y meditación.
  7. Al cuerpo lo describe como el muro que cerca el castillo. A los sentidos y potencias espirituales (memoria, entendimiento y voluntad), a veces como vasallos, a veces como centinelas, o bien simplemente como moradores del castillo. El alma, con sus numerosos aposentos, se asemeja al cielo, en el cual “hay muchas moradas”.
  8. […] mis explicaciones sobre la estrutura del alma humana conectam com esa obra de la Santa. […] el na qual entra a definição da alma como centro de todo esse edifício físico-psíquico-espiritual
  9. […] el yo se separa del cuerpo en cierta manera y se eleva en su liberdad personal por encima de su corporidade y sensibilidad. “En cierta manera”, pues, permanece ligado a ella. La vida espiritual brota siempre de nuevo de la vida de los sentidos y no se halla en terreno propio, pero el yo tiene la posibilidad de fijarse en su ser “superior” y desde allí actuar sobre lo “inferior”. Puede por ejemplo, tomar como meta la exploración cognitiva de su próprio cuerpo y de su propria vida de los sentidos. Aprende las possibilidades de servirse del cuerpo y de los sentidos como instrumentos para conocer y actuar, ejercitarlos en vista de ciertos fines y configurarlos en instrumentos siempre más perfeccionados. Tiene también la posibilidad de reprimir excitaciones sensibles, de retirarse lejos de la vida corporal y sensible y de sustentarse más en lo espiritual.
  10. […] cuanto más hondamente el alma se sumerge en el espíritu y más firmemente se instala en su centro, tanto más libremente puede elevarse sobre sí misma y liberarse de las ataduras materiales.
  11. El cuerpo está como sin vida; las potencias del alma en reposo. Portanto, Edith Stein (2004) afirma que a memória, o entendimento, a imaginação e nem o demônio perturbam esse estado de união a Deus. A alma não compreende o que aconteceu, mas Deus coloca nela a certeza de que a união aconteceu.
  12. Lo “interior y más íntimo”, es también lo “más espiritual”, lo más alejado de la matéria, lo que mueve el alma en su profundidad.